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A lacuna na gestão hídrica brasileira

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    SACRE
  • 26 de ago.
  • 6 min de leitura

Em entrevista, a hidrogeóloga Amélia Fernandes discute desafios da integração das águas subterrâneas aos instrumentos de gestão existentes 

Isabela Batistella Revisão por Amélia Fernandes

Legenda: Amélia Fernandes durante a Semana Internacional Paulista de Águas Subterrâneas. (Fonte: ACI FEB)
Legenda: Amélia Fernandes durante a Semana Internacional Paulista de Águas Subterrâneas. (Fonte: ACI FEB)

As águas subterrâneas desempenham um papel fundamental na segurança hídrica, sendo fontes essenciais de abastecimento em diversas regiões. Os recursos hídricos estão intrinsecamente ligados à dignidade humana e, em um cenário agravado pelas mudanças climáticas, a escassez hídrica tem se tornado uma preocupação cada vez maior. 

Uma das questões mais urgentes para a preservação da qualidade e disponibilidade desse recurso é a gestão adequada. Mesmo em regiões com relativa disponibilidade hídrica, a ausência de planejamento adequado pode levar a problemas severos de rebaixamento do aquífero, como ocorre no caso do Aquífero Guarani em Bauru, onde a extração ocorre sem reposição suficiente através da recarga. Ao considerar esses desafios, o Projeto SACRE – Soluções Integradas de Água para Cidades Resilientes tem como um de seus objetivos estimular a gestão sustentável de recursos hídricos subterrâneos e difundir sua importância. 

No livro “As águas subterrâneas e sua importância ambiental e socioeconômica para o Brasil”, que tem como um de seus autores o coordenador do SACRE, Ricardo Hirata, destaca o papel fundamental dos recursos hídricos subterrâneos para o abastecimento público de milhares de pessoas. Além disso esses recursos sustentam sistemas de irrigação para produção de alimentos e a produção industrial, bem como mantem importantes ecossistemas. Cerca de 80% dos municípios do Estado de São Paulo são abastecidos total ou parcialmente por águas subterrâneas, conforme publicação da Companhia Ambiental do Estado (Cetesb).

O livro do professor Hirata sinaliza os principais pontos a serem fortalecidos na gestão, abordando a necessidade de regularização de poços por meio de outorga e cadastro, e investimentos na melhoria e ampliação das redes de esgoto. A falta de tais redes gera mais de 4,3 bilhões de m³/ano de efluentes que atingem os aquíferos, sendo esse o maior problema que impacta qualidade desses reservatórios.

Um dos parceiros do SACRE, o PROAQUÍFEROS – Educação em águas subterrâneas para a segurança hídrica, tem por objetivo difundir conhecimento sobre a água subterrânea. Amélia Fernandes, coordenadora da iniciativa, destaca a necessidade de capacitar os atores que gerenciam o recurso, para sanar algumas deficiências do sistema público para a gestão dos recursos hídricos. 

Ferramentas institucionais 

Os Planos de Recursos Hídricos (PRHs) têm como principal função estabelecer diretrizes para o uso e gestão da água em diferentes regiões do país, conforme afirma a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA). Eles são fundamentais para a aplicação da Política Nacional de Recursos Hídricos, instituída pela Lei nº 9.433/1997, também conhecida como Lei das Águas, e servem como referência para a implementação de outros instrumentos previstos nessa política. 

Além de guiarem ações e investimentos, os PRHs fornecem dados estratégicas que alimentam os sistemas da ANA e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos (SINGREH), contribuindo para o planejamento hídrico integrado. Esses planos são desenvolvidos em três escalas: nacional, estadual e por bacia hidrográfica. Seu desenvolvimento envolve a participação de diferentes setores, incluindo órgãos públicos, representantes da sociedade civil, usuários da água e instituições responsáveis pelo gerenciamento dos recursos.

O processo de elaboração dos PRHs começa com um diagnóstico da situação local, avaliando tanto a quantidade quanto a qualidade da água disponível, além de mapear eventuais conflitos de uso. A partir disso, são feitas projeções de demanda futura considerando cenários diversos – socioeconômicos, climáticos e demográficos – que ajudam a definir alternativas de desenvolvimento na fase de prognóstico. Em seguida, é elaborado um plano de ação com programas, projetos e medidas a serem executadas no curto, médio e longo prazo.

De acordo com a legislação, deve haver um plano para cada bacia hidrográfica, para cada estado e também em nível nacional. O Plano Nacional dos Recursos Hídricos (PNRH), com caráter estratégico, é discutido e aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH). Já os planos de bacia, de natureza tática, são aprovados pelos respectivos Comitês de Bacia Hidrográfica (CBHs). Por sua vez, os Planos Estaduais de Recursos Hídricos (PERHs) são avaliados pelos Conselhos Estaduais.

Os Comitês de Bacias Hidrográficas (CBHs) são colegiados de decisão compostos por representantes do estado, dos municípios e de entidades da sociedade civil. As políticas de recursos hídricos são efetivamente aplicadas nas bacias hidrográficas e os planos de bacia, em conjunto com os planos diretores municipais, são instrumentos vitais para a gestão dos recursos hídricos, como apresentado abaixo na entrevista com a pesquisadora Amélia Fernandes.


Dificuldades e desafios 

Apesar de todas essas ferramentas, a efetiva implementação das políticas públicas de recursos hídricos ainda enfrenta entraves estruturais. Fernandes aponta que um dos principais desafios reside na subutilização dos dados e conhecimentos já disponíveis, especialmente no que diz respeito às águas subterrâneas, que seguem sendo invisibilizadas nos processos decisórios. 

Segundo a pesquisadora, que atua há décadas na área de hidrogeologia, as águas subterrâneas ainda não são adequadamente tratadas nos planos de bacia e nos planos de ação e investimentos (PAPI). “Você abre o plano, tem setenta ações prioritárias, e só quatro para águas subterrâneas”, observa. Essa ausência tem consequências diretas: ações fundamentais, como diagnósticos sobre a disponibilidade e qualidade da água subterrânea, deixam de receber recursos dos fundos públicos, como o Fehidro, por não estarem previstas nos documentos de planejamento. 

Outro problema apontado por ela é a falta de capacitação técnica nos comitês de bacia e entre os profissionais envolvidos na elaboração dos planos. Muitas vezes, os hidrogeólogos não são incorporados às equipes, o que compromete o uso adequado das informações técnicas. Os dados existente sobre aquíferos e poços não são analisados de forma correta e/ou completa. 

Além disso, Fernandes ressalta que há um desconhecimento técnico sobre o funcionamento dos aquíferos, o que leva a interpretações equivocadas. Um exemplo citado pela pesquisadora é o conceito de superexplotação. “As pessoas olham um mapa cheio de poços e acham que ali já tem superexploração, mas não entendem que a aparência do mapa pode estar relacionado à escala de exibição do mapa. Além disso o problema de superexplotação só se confirma  com o rebaixamento contínuo do nível da água, dado que depende de monitoramento ao longo do tempo para construção de uma série histórica de medições”, explica. 

A ausência de integração entre os planos de bacia e os planos diretores municipais também é apontada como um entrave para a gestão sustentável da água. O uso e ocupação do solo, muitas vezes, desconsidera a existência e a vulnerabilidade dos aquíferos. Isso leva à instalação de áreas urbanas e industriais em regiões sensíveis, aumentando os riscos de contaminação e esgotamento. “Se ocupamos uma área que tem potencial para produzir muita água com atividades poluentes, comprometemos esse recurso para o futuro”, alerta Fernandes. 

Em áreas urbanas, o cenário se agrava: em vários locais há proximidade entre poços e áreas contaminadas, alem de atividades industriais que podem poluir o solo e a água subterrânea; essas situações se desenrolam sem o devido controle ou planejamento. Para Amélia, falta um cadastro completo e atualizado de poços e o cruzamento da localização destes com áreas de risco; tudo isso integrado em um sistema de informações geográficas. “Com isso, daria para ver claramente onde há conflitos ou riscos iminentes, como um poço de abastecimento público ao lado de uma área contaminada”, explica.

Outro desafio crítico está ligado aos aquíferos fraturados, que predominam em boa parte do território brasileiro, como nas regiões metropolitanas de São Paulo, Campinas e Sorocaba. Nesses sistemas, a água circula por fendas e fraturas nas rochas, o que torna a perfuração de poços mais incerta e o risco de contaminação muito mais difícil de avaliar. “Quando um contaminante entra em um aquífero fraturado, não dá para saber por onde ele vai. E a recuperação  da área se torna incerta ou mesmo impossível”, adverte Amélia. 

A pesquisadora defende um conjunto de ações estratégicas, como: construção de poços com rigor técnico, seguindo normas de segurança; campanhas de educação para usuários regulares e clandestinos de poços; fiscalização ativa e contínua; mapeamento das áreas de maior potencial de produção de água bem como as áreas mais vulneráveis à contaminação; e incorporação de análises químicas e de nível d’água como rotina de monitoramento. 

“Com as mudanças climáticas e as crises hídricas cada vez mais frequentes, as águas subterrâneas vão se tornar ainda mais fundamentais. Portanto, é preciso lembrar que a sustentabilidade da explotação das águas subterrâneas exige estudos e monitoramento”, conclui Amélia. 

 
 
 

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